sexta-feira, 26 de abril de 2013

BOBBY FISCHER: O FENÔMENO


por Edu Frazão

Bobby Fischer foi certamente o maior gênio que o mundo do xadrez já conheceu. Mas proporcional à admiração que conquistou foi a decepção que provocou quando prematuramente parou de jogar aos 29 anos, logo após conquistar o título mundial de 1972. A maestria com que dominava as combinações no tabuleiro foi nublada por uma enxurrada de pensamentos paranoicos que o impediram de fazer o que se dedicara a vida inteira: magia com o tabuleiro de xadrez.

Robert James Fischer nasceu em 9 de março de 1943 na cidade de Chicago, Illinois, EUA. Filho de pais separados (mãe suíça e pai alemão), aos seis anos mudou-se para Nova York, onde aprendeu os primeiros movimentos do jogo com sua irmã mais velha Joan. Teve evolução enxadrística discreta até 1955, mas conseguiu melhorar seu jogo e ascender em categoria quando se filiou ao Clube de Xadrez de Manhattan. Em 1956, aos 13 anos, teve sua primeira grande participação no Campeonato Norte-Americano de Xadrez para Amadores, conseguindo a 11ª colocação entre 88 inscritos. Desde então seu crescimento foi notável ao passo que não parava de competir e sustentava uma tremenda paixão e vontade de aprender. 


Bobby Fischer aos 14 anos
Dos 13 aos 14 anos conquistou os três maiores torneios dos EUA e tornou-se grandemente temido apesar da pouca idade. O título nacional garantiu vaga no Interzonal de 1958, ano de sua maturação enxadrística. Ele perdeu apenas duas partidas: uma contra o húngaro Pal Benko (30) e outra contra o islandês Friðrik Ólafsson (23), terminando apenas 1,5 pontos atrás de outro grande jogador, o soviético Mikhail Tal (22). O quinto lugar obtido o levou ao Torneio de Candidatos de 1958 e ao título de Grande Mestre Internacional com apenas 15 anos. Sua fama se espalhara como um vírus por toda a Europa e Américas; todos queriam se infectar. Choviam convites para participar de torneios no mundo inteiro e a regularidade de suas partidas o levaram à primeira vitória sobre um Grande Mestre soviético em 1959: Paul Keres (43). No entanto, a ascensão do menino de 16 anos no Torneio de Candidatos foi aniquilada pelo gênio de Mikhail Tal, que o venceu por 4-0 no embate individual.

Bobby Fischer enfrentando Viktor Korchnoi pelo
Interzonal de 1962.
Nos anos que se seguiram, o jovem Grande Mestre enfrentou e derrotou os melhores do mundo, com destaque para a conquista do Interzonal de 1962 com dois pontos de vantagem sobre os soviéticos Efim Geller (37), Tigran Petrosian (33) e Viktor Korchnoi (31). Seu quarto lugar no Torneio de Candidatos de Curaçao trouxe uma polêmica à tona. Bobby acusou os soviéticos de jogarem em equipe (Petrosian, Geller, Korchnoi e Tal) para favorecerem uns aos outros. De fato, um grande número de empates ocorreu entre eles e no final viu-se uma surpreendente série de três derrotas de Korchnoi  para seus colegas, deflagrando a vitória de Tigran Petrosian. Com a denúncia, uma deliberação da Organização Mundial de Xadrez (FIDE) modificou as regras da disputa e o torneio passou a ser jogado em matches individuais eliminatórios.

Os anos seguintes continuaram a mostrar a evolução de duas constantes na carreira de Bobby: sede de vitória e polêmica. Entre os anos de 1963 e 1969 registraram-se algumas situações interessantes. A primeira delas ocorreu em 1964, quando decidiu fincar um hiato em sua carreira, não disputando qualquer torneio naquele ano. Em 1967 abandonou, por motivos religiosos, o Torneio Interzonal após 10 rodadas bem sucedidas. Ficou mais nove meses sem disputar qualquer partida de xadrez e quando retornou voltou a vencer. Mas em 1968 abandonou outro torneio, desta vez a Olimpíada da Suíça. O motivo foi a recusa de suas exigências pela organização do evento. Em 1969 não disputou qualquer torneio, incluindo o Campeonato Americano, o que o deixou de fora do ciclo pela disputa do mundial. Em 1970 Fischer venceu o famoso "Match do Século", onde o time dos soviéticos enfrentou uma equipe formada por jogadores de todo o mundo; participaram deste torneio 12 jogadores de primeira linha. Ele venceu e ficou nada menos do que 4,5 pontos na frente do segundo colocado, Mikhail Tal (34).

O jovem G.M. brasileiro, Mequinho.
Bobby iniciou nova escalada de vitórias incontestáveis. Venceu o importante torneio Roving-Zagreb, com 2 pontos de vantagem sobre Korchnoi (39) , Gligorić (47), Smyslov (49) e Hort (26), e 2,5 sobre Petrosian (41). Em seguida venceu o Torneio de Buenos Aires, em que empatou apenas quatro das 17 partidas, sendo uma delas contra o primeiro Grande Mestre brasileiro, Henrique da Costa Mecking (18), o Mequinho (foto ao lado). Abaixo reproduzimos esta partida contra o notável jogador brasileiro.


O título mundial nunca esteve tão ao alcance das habilidades de Bobby, mas havia um problema. Por ter desistido de disputar o Campeonato Americano de 1969, ele não conseguiu a vaga para o Interzonal de 1970. Sendo assim, a federação americana enviou uma petição à FIDE para incluir o nome de Bobby no torneio. A vaga dependeria de uma desistência de qualquer participante e Paul Benko aceitou uma proposta financeira da federação americana para ceder seu lugar. A FIDE concordou com a substituição e Bobby simplesmente desmontou seus adversários no torneio com uma vantagem histórica de 3,5 pontos em 15 vitórias, sete empates e uma derrota (para o dinamarquês Bent Larsen, de 35 anos). No Torneio dos Candidatos de 1971, Bobby protagonizou uma exibição cinematográfica. Nas quartas-de-final disputadas em Vancouver, Canadá, ele humilhou o soviético Mark Taimanov (45) por nada menos que 6-0. 

Fischer vs. Petrosian: Torneio dos Candidatos de 1971.
Os sons dos "golpes" de Fischer ecoaram forte na mídia, inclusive a não especializada, e a próxima humilhação só mudou de lugar. Nas semifinais que aconteceram em Denver, EUA, Bobby "destroçou" Bent Larsen com outro contundente 6-0. Numa atitude um tanto medíocre, Bent mais tarde desmereceu a vitória de Bobby ao afirmar que estava mal de saúde durante o matchA grande final aconteceu em Buenos Aires contra Tigran Petrosian (42). O placar não menos humilhante de 6,5-2,5 a favor de Fischer reafirmou a superioridade do americano e, pela primeira vez em muitos anos, a coroa do xadrez correria risco de deixar a União Soviética. 


O mundo aguardava ansiosamente o dia 2 de julho de 1972 para o confronto do século entre o desafiante americano Bobby Fischer (29) e o então campeão mundial, o soviético Boris Spassky (35), pelo título mundial de xadrez. Muitos países enviaram suas propostas financeiras para sediar o match, inclusive o Brasil. Por fim, após longas e polêmicas discussões, o torneio foi realizado em Reykjavik, na Islândia. Na posição de estrela máxima do espetáculo, e às vésperas da abertura oficial da disputa, Bobby exigiu que 30% do arrecadado com a transmissão do match fosse repassado ao futuro campeão. A organização não aceitou e à cerimônia de abertura Bobby nem sequer tinha embarcado para a Iugoslávia. O suspense aumentou quando faltavam apenas 10 horas para a primeira partida e o paradeiro do campeão americano era um mistério. Faltando cinco horas, em vista do não pronunciamento de Bobby, o presidente da FIDE e ex-campeão mundial Max Euwe (71) anunciou que adiaria em 48 horas o início do match. Mas a frustração tomou conta dos entusiastas do mundo inteiro e dos três mil pagantes que assistiriam ao vivo às partidas no Exhibition Hall do Palácio de Desportos de Reykjavik, quando até o dia 3 de julho não havia qualquer sinal de que Bobby jogaria. Neste mesmo dia, um homem que merece ser lembrado para sempre pelas consequências de seu ato, o banqueiro londrino James Slater, ofereceu a farta quantia de 125.000 dólares para Bobby Fischer finalmente jogar. Fischer aceitou e embarcou imediatamente para a Islândia. Curiosamente no dia da independência americana, Bobby Fischer chegou a Reykjavik. Entretanto, trâmites entre a federação soviética e a FIDE sobre as consequências do atraso de Bobby levaram a um novo adiamento do match. Finalmente, às 18:05h de 11 de julho de 1972, com atraso (quiçá estratégico) de 5 minutos por parte de Bobby, o match do século começou.

Bobby Fischer (direita) enfrentando Boris Spassky pelo Campeonato
Mundial de Xadrez em 1972. 
O confronto foi inacreditável, uma vez que Bobby perdeu dois pontos logo nas duas primeiras partidas: perdeu a primeira partida e não compareceu à segunda. Rumores apontavam para uma desistência de Bobby, mas ele voltou forte para a terceira partida. Com uma agressividade e imaginação impressionantes, Bobby Fischer ofereceu à eternidade uma de suas melhores partidas, de acordo com o comentarista do evento e Mestre Internacional espanhol Román Torán. Abaixo reproduzimos a partida, em que Bobby venceu jogando com peças pretas.



As novidades teóricas de Fischer desmontaram a preparação de oito meses de Spassky. A segunda vitória, e consequente retomada da igualdade no match (2,5-2,5), veio logo na quinta partida. Mas foi em sua sexta partida que Fischer presenteou a plateia, e todo o mundo, com uma sinfonia genial de combinações. A partida é verdadeiramente uma pérola, onde Fischer minuciosamente priva Spassky de seus movimentos até um inescapável estrangulamento para fazer 3,5-2,5 e virar o match. Bobby, que nunca havia jogado o Gambito da Dama com as brancas, o fez justamente num match pelo campeonato mundial e desconcertou o campeão soviético. Ao fim da partida, tamanho foi o esplendor da batalha, Spassky assumiu o lugar de espectador/admirador e levantou-se para aplaudir seu adversário. Uma atitude de um verdadeiro gentleman por parte do campeão do mundo e de quem VERDADEIRAMENTE aprecia o jogo. Abaixo podemos reproduzir essa incrível partida.




Bobby ainda venceria as partidas de números 8, 10, 13 e 21 para fazer impressionantes 12,5-8,5 e sagrar-se o indiscutível campeão mundial de xadrez. Tornou-se uma estrela tão brilhante que levou a uma disseminação do jogo sem precedentes pelos quatro cantos do planeta. Ele realmente imergiu nos confins dos livros de xadrez e decifrou as mais complexas combinações. Dominou a arte como ninguém. Sua capacidade mental era tão impressionante que folheava os livros de estratégia, como numa leitura dinâmica, e acompanhava as partidas anotadas como se as estivesse observando no tabuleiro em tempo real. Fazia ainda parte de seu treinamento a prática contínua de esportes; seu preferido era o boxe.

Anatoli Karpov (direita) recebendo o título de Campeão
Mundial de Xadrez de 1975.
Mas talvez o período mais marcante da vida de Bobby Fischer tenha sido aquele após a conquista do título mundial e sua desistência em defendê-lo em 1975 contra o então jovem campeão soviético de 24 anos Anatoli Karpov. Após uma série de novas exigências e desentendimentos com a FIDE, Fischer não compareceu ao match e Karpov ficou com o título mundial. Desde então, o mundo pôde tristemente presenciar a queda vertiginosa de seu ídolo, tomado por paranoia e extremismo religioso. David Shenk, autor do livro The Immortal Game: A History of Chess, participou do excelente documentário Bobby Fischer contra o mundo, onde declarou: "Tentamos antecipar o que nosso oponente pode fazer [...]. Um bom jogador de xadrez é paranoico no tabuleiro, mas essa paranoia na vida real não funciona muito bem." O maior potencial do xadrez, o primeiro ocidental em anos a assumir a hegemonia do xadrez havia se afundado em tantos pensamentos obsessivos e manias de perseguição que sua mente não tinha mais espaço para jogar xadrez. Descendente de judeus, tornou-se inveterado antissemita, isolou-se do mundo e não mais jogou. Nos anos seguintes à conquista do título mundial Bobby Fischer foi de jovem gênio a velha lenda.
Zita Rajcsanyi
Passaram-se 18 anos e o mundo já não tinha mais esperanças de ver seu ídolo fazer o que mais sabia fazer. Foi então que uma luz apareceu no fim do túnel. A luz tinha um nome: Zita Rajcsanyi, uma enxadrista húngara de 19 anos e fã do ex-campeão. Ela tirou o "urso" de sua hibernação com uma simples carta em 1990. A própria Zita fez os arranjos e o retorno de Bobby foi nada menos do que num rematch contra Boris Spassky em 1992. 


Boris Spassky (esquerda) e Bobby Fischer no rematch de 1992.
Bobby venceu novamente mas foi declarado criminoso ao violar um embargo das Nações Unidas e jogar na Iugoslávia durante a guerra civil. Sem pátria, foi preso no Japão em 2004 sob ameaça de extradição aos EUA. Conseguiu asilo na Islândia em 2005, mas passou seus últimos dias com os mesmos pensamentos obsessivos que o fizeram deixar o xadrez. Sua morte em 2008 foi sentida pelos milhões de amantes do xadrez em todo o mundo. Sua idade? 64. O número de casas do tabuleiro de xadrez.

Bobby Fischer aos 64 anos.
É bem provável que sua doença e genialidade funcionassem como gêmeos siameses; um não poderia viver sem o outro. O neurologista Kari Stefansson trouxe um argumento interessante ao assunto: "A maioria de nós pensa dentro de limites relativamente estreitos. Mas, ocasionalmente, um indivíduo consegue ‘sair da caixa'. Essas são as pessoas que fazem novas descobertas, são os criativos. Mas, [também] ocasionalmente, torna-se difícil retornar à caixa. [...] Não acho que Bobby poderia ter sido tão criativo, tão extraordinário, sem ser extraordinário em outros aspectos." Ele viveu para o xadrez durante 23 anos e deixou um legado imortal: suas maravilhosas partidas. Talvez o maior sentimento que hoje vigore nas mentes dos apreciadores desta arte/ciência, dos fãs angariados pelo fenômeno que foi o jogador Bobby Fischer, não é o da emoção das batalhas que protagonizou nos tabuleiros do mundo inteiro, mas o da frustração pelo muito que ele ainda poderia ter alcançado.

sábado, 13 de abril de 2013

CARLSEN VS. KRAMNIK: UMA FINAL ELETRIZANTE

por Edu Frazão

Terminou dia 1º de abril em Londres o Torneio dos Candidatos, que decidiu quem enfrentará o atual campeão, o indiano Viswanathan Anand, pelo título mundial de xadrez. O torneio foi disputado entre oito grandes mestres, com destaque para o atual número um do ranking mundial, o norueguês Magnus Carlsen, e o russo Vladimir Kramnik, que em 2000 conquistou o título mundial ao derrotar o maior enxadrista de todos os tempos e então campeão absoluto desde 1985, Garry Kasparov.

As 14 rodadas do Torneio dos Candidatos 2013 foram transmitidas ao vivo pelo site london2013.fide.com e não faltou emoção. Considerado por muitos o novo Mozart do xadrez, Carlsen chegou à 13ª rodada empatado por pontos em primeiro lugar com Kramnik (8,5 – 8,5), que levava desvantagem no critério de desempate com uma vitória a menos. Bastaria uma vitória de Carlsen na 14ª rodada, jogando de brancas contra o número 14 do ranking e também russo Peter Svidler, para garantir o título. Kramnik, jogando de pretas, não poderia contar com um tropeço de Carlsen e jogou para ganhar contra o ucraniano Vassily Ivanchuk, número 13 do ranking. Parecia brincadeira típica de 1º de abril quando, de forma incomum, Magnus Carlsen perdeu sua partida decisiva. Bastaria um empate para que Kramnik garantisse o título, mas o que se sucedeu foi simplesmente inacreditável. As câmeras captaram o momento em que Kramnik se levantou para espiar a partida de Carlsen na mesa ao lado, minutos antes do fim. Ao constatar a derrota iminente de Carlsen, Kramnik retornou ao seu tabuleiro somente para confirmar uma incrível ironia do destino. Ele havia forçado tanto o jogo para conseguir uma vitória que acabou oferecendo espaço para que seu adversário causasse danos irreparáveis ao seu jogo.

Ao perder, Carlsen seguiu desolado à sala da coletiva de imprensa sem sequer olhar para a importante batalha que se desenrolava na mesa ao lado. Após a entrevista, e ansioso com a possibilidade de empate de Kramnik, Carlsen pede à anfitriã para checar o jogo de seu colega através dos monitores da sala de imprensa. Foi incrível! Magnus Carlsen, número um do ranking mundial de xadrez desde 2010, acostumado a contar com suas próprias vitórias para decidir torneios, acompanhou como espectador os momentos finais da mais importante partida de sua carreira de enxadrista. Foram os poucos minutos mais longos de sua vida para então respirar aliviado quando Vladimir Kramnik, ex-campeão e atual número três do ranking mundial, desistiu.

Vladimir Kramnik (esquerda) e Magnus Carlsen em 

partida válida pela  9ª rodada do Torneio dos Candidatos 

da FIDE, 2013. A referida partida terminou empatada. 
Fonte: http://www.fide.com
Magnus Carlsen, 22 anos, nascido em Tønsberg, Noruega, o prodígio do xadrez que aos 13 anos conseguiu empatar uma partida com o maior campeão de xadrez de todos os tempos, Garry Kasparov, finalmente terá sua chance pelo maior título do mundo do xadrez. O match contra o atual campeão Viswanathan (Vishy) Anand, de 43 anos, ocorrerá em outubro deste ano.

XADREZ, O JOGO MILENAR

por Edu Frazão

O jogo de xadrez surgiu na Índia e foi difundido pela Pérsia, Arábia, outras regiões asiáticas e então por toda a Europa. Sua “infância” na Índia parece ter sido registrada nos documentos em sânscrito, em narrativas que apontam o período entre 3.400 e 2.400 a.C. como o mais provável para seu “nascimento”. Neste primeiro artigo da Coluna do Rei, vamos fazer um passeio pela estrada que leva ao surgimento do jogo de tabuleiro mais popular do mundo.

O xadrez moderno foi minuciosamente esculpido em pedra bruta. Suas formas e regras são consideradas tão perfeitas pelos mais de 600 milhões de adeptos ao redor do mundo que qualquer proposta de mudança tem sido imediatamente refutada desde o século XV, quando as últimas modificações foram inseridas no jogo. Sua origem sempre foi cercada de muita controvérsia e fábulas maravilhosas mas em 1860, o professor de línguas orientais de King’s College London, Duncan Forbes, publicou seu livro intitulado The History of Chess. Nesta obra compilou e completou os estudos sobre os textos em sânscrito que relatam sobre um antigo jogo de guerra hindu chamado chaturanga. Forbes usou seu inigualável conhecimento sobre sânscrito, e também sobre o jogo, para concluir que as narrativas hindus sobre o chaturanga são os mais antigos textos a mencionar princípios e formas que se assemelham ao xadrez que é jogado nos dias de hoje. Sua origem exata, como o ano ou pessoa que o inventou, está perdida nas profundezas da antiguidade remota mas estima-se que tenha surgido entre os séculos XXXIII e XXIII a.C..

O tabuleiro do chaturanga era praticado por quatro pessoas e as peças eram diferentes em número, forma e movimentação. No idioma nativo hindu, chaturanga significa quatro tipos de forças, representadas pelas peças no tabuleiro e baseadas nas divisões militares da Índia antiga: rei, elefante (representante da atual torre), cavalo, navio (mais tarde biga e então bispo) e infantaria, formada por quatro peões. Quatro agrupamentos destas peças com cores distintas (verde, amarelo, preto e vermelho), um para cada jogador, eram posicionados nos quatro lados do tabuleiro. Jogadores de lados opostos eram aliados contra os outros dois. O fator sorte era dominante já que a peça a ser movida era decidida num lance de dado. A habilidade mental do jogador no decorrer da partida era, portanto, forçadamente coadjuvante. A natureza peculiar deste embrião do xadrez foi explicada em detalhes no livro do professor Forbes mas uma das regras mais interessantes era a possibilidade de captura dos reis.

Representação gráfica dos tabuleiros de chaturanga e shatranjrespectivamente. 
Fontes: history.chess.free.fr; www.iggamecenter.com
Forbes classificou a história do xadrez em três períodos distintos: 1) o do chaturanga, que vai do século XXXIII a.C. até o século VI d.C.; 2) o medieval, que vai do século VI ao XVI d.C., e 3) o moderno, que vai do século XVI até a atualidade. O período do xadrez medieval começou com a introdução do jogo na Pérsia, sob o nome de shatranj. Neste período observaram-se as primeiras mudanças no jogo. Os exércitos de lados opostos foram unificados num mesmo lado do tabuleiro e um dos reis aliados tornou-se subordinado. Esta nova peça foi chamada pelos persas e árabes de farzin ou wazir, que significa conselheiro ou ministro, e passou a ter apenas metade da força original de soberano independente. Era o precursor da rainha na versão moderna do jogo mas ainda com capacidade de ataque bem limitada; era mais fraco que os peões ao passo que só podia ser movido a uma casa por vez em diagonal. O bispo e a torre assumiram sua posição definitiva no jogo como conhecemos hoje e o dado foi completamente dispensado. O jogo se transformou numa disputa de puro poder mental e habilidade intelectual.

Quando o shatranj foi introduzido na Europa por comerciantes persas no século XI, o farzin foi substituído pela rainha, numa visão mais romântica da peça. Mas somente no final do século XV, através de uma grande mudança de curso nas regras do xadrez, é que a rainha adquiriu habilidade de movimento livre ao longo de colunas e diagonais e se tornou a peça mais forte do jogo. Esse xadrez moderno trouxe ainda outras mudanças importantes, como a extensão do movimento do bispo, que agora alcançaria toda a diagonal de sua cor num mesmo lance, e dos peões, que passariam a avançar uma ou duas casas em seu primeiro lance. Outra adição interessante foi o roque, que na tradução do Inglês castling the king significa encastelar o rei, protegendo-o numa espécie de dança com a torre. É interessante notar que o professor Forbes profetizou em seu livro, escrito no século XIX d.C., que com o tempo a rainha absorveria também as características do cavalo. Esta mudança nunca ocorreu.

Tabuleiro e peças do jogo de xadrez moderno. 

Fonte: http://worldwidechesssets.com
As novas regras aceleraram o jogo e intensificaram a batalha, ao passo que o menor erro agora poderia resultar em xeque-mates mais violentos. As mudanças foram provavelmente fruto de experimentação coletiva e então padronizadas ainda no século XVI com o advento da impressão em massa. O jogo mais acelerado facilitou a organização, anotação, codificação das regras e produção de livros de estratégia. O xadrez é hoje vastamente praticado e possui um campeonato mundial de prestígio organizado pela FIDE (Organização Mundial de Xadrez). É uma atividade estimulada em escolas do mundo inteiro por seu papel no desenvolvimento social e intelectual de crianças e jovens. Estas e muitas outras nuances do jogo serão abordadas semanalmente em nossa coluna.

Até lá!